segunda-feira, julho 03, 2006

Os Pioneiros I - O Pesadelo de António Maria

A prova de que o cinema de animação não é só para as criancinhas, mas também para adultos, é-nos dada precisamente pelo filme pioneiro de animação portuguesa - "O Pesadelo de António Maria", que data de 1923.

No início do século Portugal vivia um ambiente politico conturbado “os anos de 1920 e 1921, em Portugal como noutros países da Europa, caracterizaram-se por situações instáveis e conturbadas”. A corrupção, os atentados políticos, o “bombismo social” as crises de autoridade e a inflação faziam parte do dia-a-dia. É neste contexto que surge o Pesadelo de António Maria, um pequeno filme animado que abria a revista “Tiro ao Alvo” de Luís de Aquino, Xavier de Magalhães e Lourenço Rodrigues, exibida no Éden Teatro em Lisboa.


[imagem do arquivo de Paulo Cambraia]

Este filme animado tinha por personagem principal António Maria da Silva, uma figura política que ocupou variados cargos relevantes[1], contudo o desejo de dominar a política portuguesa e de ser a primeira figura do seu partido levam-no a adoptar atitudes pouco populares entre o povo, coisa que aliás se reflecte na criação desta animação.

“O Pesadelo” conta-nos uma pequena história onde os medos e anseios de António Maria da Silva se libertam do seu subconsciente para o atormentar, questão essa que é resolvida com uma ida à revista “Tiro ao Alvo”, para que “vossa excelência” não tivesse mais pesadelos.

O pioneiro Português de Animação apresenta aspectos formais e estilísticos muito próprios e dificilmente homónimos em todo o cinema de animação que lhe seguiu.
Joaquim Guerreiro efectuou o casamento perfeito entre os aspectos formais e estilísticos. A caricatura não poderia estar melhor, senão nesta animação de carácter satírico.
O espólio do cinema de Animação Portuguesa pertencente ao período entre 1920 e 1930 (do qual temos conhecimento), é muito curto, contando apenas quatro filmes: um suposto anúncio internacional para a empresa discográfica “His Masters Voice”, produzido por Nunes & Quintão em 1920, do qual se sabe muito pouco, restando ainda algumas dúvidas quanto à animação das figuras [2]; Segue-se “O Pesadelo de António Maria”, datado de 1923, realizado por Joaquim Guerreiro, um caricaturista e desenhador de vários jornais, "Tip Top" no ano de 1925, realizado por Fred Netto, e “Uma História de Camelos” datado de 1930 realizado por João Rodrigues Alves, um “ilustrador e mestre na Escola António Arroio”. Sabe-se que durante este período foi também produzido o filme “A Lenda de Miragaia”, que só viria a estrear em 1931. Este último filme apresenta uma técnica alemã muito característica: o recorte de papel.

Filme Destaque: "O Pesadelo de António Maria"

Género: Animação
Técnica: Animação Tradicional (desenho sobre papel - caricatura)
Realizador: Joaquim Guerreiro (caricaturista e desenhador)
Data: 1923
Estreia: 25 de Janeiro de 1923, no Éden Teatro, em Lisboa
País: Portugal
Som: Filme Mudo
Duração: ?
Estado: Perdido - apenas se conhecem os desenhos originais, através dos quais, Paulo Cambraia executou uma reconstituição do filme original
Produção: Eden-Teatro
Personagens: O Politico, o Policia e o Povo

António Maria da Silva (1872-1950) é a personagem principal, que dá título ao filme. Trata-se de uma figura da política portuguesa, que ocupou variados cargos relevantes[3], contudo, o desejo de dominar a política portuguesa e de ser a primeira figura do seu partido levam-no a adoptar atitudes pouco populares entre o povo. Neste pequeno filme António Maria revela-se uma personagem receosa da atitude do povo, pouco seguro de si, um homem nervoso, perturbado e preocupado.

O Policia é neste filme caracterizado de uma forma caricata. A figura de autoridade e vigilância surge no primeiro plano a dormir, despreocupado e alienado das suas funções.

O Povo surge como um colectivo que partilha ideais comuns. A frase “abaixo a carestia e o ensino” é o seu mote. Tem uma atitude agitaria, contra o regime.

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O Desenho

A Reconstituição filme foi feita por Paulo Cambraia[4], a partir de 159 desenhos originais e oito legendas manuscritas, pertença da CRP – Colecção Ricon Peres. O proprietário adquiriu estes desenhos num alfarrabista, em Lisboa, desconhecendo na altura de que se tratavam dos desenhos originais do filme [5].

As folhas dos desenhos encontram-se amarelecidas, devido ao mau acondicionamento dos mesmos durante anos (os desenhos só foram adquiridos pela colecção Ricon Peres em finais dos anos 80), no entanto a reconstituição com base nesses desenhos adquire um aspecto interessante que resulta desse tom de amarelo [6].

Os desenhos são lineares; vivem da linha e das diferenças de espessura entre elas, são pouco elaborados e do ponto de vista estilístico um pouco pobres. Mas comparando este pequeno filme com algumas experiências anteriores, feitas na Europa e na América, podemos concluir que o desenho não se encontra muito desfasado dos seus contemporâneos. Não nos podemos esquecer de que em Portugal as condições técnicas para a realização deste tipo de trabalho eram péssimas, e que na maioria das vezes era o animador que construía os seus próprios instrumentos de trabalho.
Outro aspecto interessante detém-se com a organização dos desenhos no espaço. A escala dos desenhos e as sombras, por exemplo, não obedecem a qualquer regra de perspectiva, surgindo em cada frame de forma diferente da do frame anterior. As personagens aparecem desproporcionadas, quer seja entre si, quer seja com o cenário. Com as sombras ocorre o mesmo, tanto pode aparecer uma personagem a projectar sombra num plano, como no plano seguinte a sombra pode desaparecer. Estes pormenores poderiam reflectir alguma desatenção por parte do animador, ou indicar-nos que os desenhos seriam apenas estudos de personagem e cenários, ou ate mesmo que os 159 desenhos poderiam ser apenas uma pequena parte do total, contudo, Paulo Cambraia, responsável pela reconstrução do filme, com base nos desenhos originais, afirma que não ter quaisquer dúvidas sobre o facto de serem os desenhos definitivos e totais, pelo que os pormenores acima referidos podem se dever a outras causas.


[1] Foi Ministro do Fomento, Ministro do Trabalho e da Previdência Social, Ministro das Finanças, 2 por quatro vezes Primeiro-ministro, cumulando sempre outros cargos (Presidente do Ministério, Presidente e Ministro do interior, Presidente e Ministro da Guerra, Presidente e Ministro do Interior)

[2] Ver post "His Masters Voice"

[3] Foi Deputado às Constituintes e mais tarde Ministro do Fomento nos governos de Afonso Costa, de 1913 a 1914 e de 1915 a 1916; Ministro do Trabalho e da Previdência Social, no ministério da União Sagrada, presidido por António José de Almeida, de 16 de Março de 1916 a 25 de Abril de 1917; Ministro das Finanças, no governo de Sá Cardoso, de 3 a 15 de Janeiro de 1920; E por quatro vezes Primeiro-ministro, cumulando sempre outros cargos (Presidente do Ministério) entre 26 de Junho de 1920 e 19 de Julho de 1920; (Presidente e Ministro do interior), de 7 de Fevereiro de 1922 a 15 de Novembro de 1923;Presidente e Ministro da Guerra), de 1 de Julho a 1 de Agosto de 1925. (Presidente e Ministro do Interior), entre 18 de Dezembro de 1925 a 30 de Maio de 1926).

[4] Paulo Cambraia efectuou a reconstrução do filme "O Pesadelo de António Maria" com base nos 159 desenhos originais, pertencentes à colecção Ricon Peres. É produtor e historiador de Cinema de Animação.

[5] Os desenhos encontram-se no Museu da Presidência da República, no Palácio de Belém, Lisboa.

[6] Desde que adquiridos pela Colecção Ricon Peres, em finais de 80, os desenhos foram acondicionados devidamente, encontrando-se em bom estado de conservação, tendo em conta a sua idade.

Fotocópia de um dos 159 desenhos originais do filme “O Pesadelo de António Maria”
[imagem pertencente à colecção Ricon Peres]

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